A face sombria dos usos da memória pelo Poder Legislativo: um estudo da iniciativa parlamentar para reconhecer o Projeto Rondon como patrimônio cultural imaterial do Brasil (2019 a 2024)

Abstract

O presente trabalho propõe uma investigação abrangente sobre a proposta de patrimonialização do Projeto Rondon, durante o período de 2019 a 2024, tendo como foco a análise do Projeto de Lei (PL) nº 4.613/2019 apresentado no Senado Federal. O objetivo central é compreender, por meio de análise documental, bibliográfica e de recursos da história oral, as motivações e implicações inerentes à transformação do Projeto Rondon em bem imaterial do patrimônio cultural brasileiro pela via legislativa, em um contexto político nacional de desmonte cultural e educacional em que esse PL emergiu. O Projeto Rondon teve início durante o período da Ditadura Militar, em julho de 1967, com a Operação Zero, tendo sido institucionalizado pelo Governo Federal por meio do Decreto nº 62.927, de 28 de junho de 1968, e permanecendo em vigência até 1989. Em 2005, ele foi reativado a partir da proposta encaminhada à Presidência da República pela União Nacional dos Estudantes (UNE) de novembro de 2003. Embora o senso comum frequentemente reconheça méritos nesse tipo de iniciativa, há a necessidade de examinar criticamente a prática recorrente de patrimonialização - especialmente de natureza imaterial - por meio de ações do Poder Legislativo, considerando possíveis desconexões com a história, com os objetivos de preservação e valores das comunidades detentoras dos bens culturais que se pretende patrimonializar. Este estudo visa contribuir para a compreensão das dinâmicas entre história, política e preservação do patrimônio cultural, utilizando o Projeto Rondon como estudo de caso para abordar questões problemáticas sobre a política de patrimônio cultural no Brasil. Parte-se da hipótese de que as declarações legislativas de bens como patrimônio cultural vêm se avolumando nos últimos anos, frequentemente motivadas por interesses individuais e desvinculadas dos princípios que orientam as políticas de patrimonialização. Nesse contexto, a pesquisa evidencia o patrimônio cultural como um campo de disputa, onde o Poder Legislativo Federal busca afirmar-se como agente definidor das referências culturais nacionais, apropriando-se de uma função tradicionalmente atribuída ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Palavras-chave: patrimônio cultural imaterial; projeto rondon; projeto de lei de patrimonialização; poder legislativo.The present work proposes a comprehensive investigation into the proposed patrimonialization of the Rondon Project during the period from 2019 to 2024, focusing on the analysis of Bill (PL) nº 4.613/2019 presented in the Federal Senate. The central objective is to understand, through documentary, bibliographic and oral history analysis, the motivations and implications inherent in the transformation of the Rondon Project into an immaterial asset of Brazilian cultural heritage, through the legislative means, in a national political context of cultural and educational dismantling in which this PL emerged. The Rondon Project began during the period of the Military Dictatorship, in July 1967, with Operation Zero, having been institutionalized by the Federal Government through Decree nº. 62.927, of June 28, 1968, and remaining in force until 1989. In 2005, it was reactivated from the proposal sent to the Presidency of the Republic by the National Union of Students (UNE) of November 2003. Although common sense often recognizes merits in this type of initiative, there is a need to critically examine the recurring practice of patrimonialization - especially of an immaterial nature - through actions of the Legislative Branch, considering possible disconnections with history, with the objectives of preservation and values of the communities that own the cultural assets that are intended to be patrimonialized. This study aims to contribute to the understanding of the dynamics between history, politics and preservation of cultural heritage, using the Rondon Project as a case study to address broader issues about cultural heritage policy in Brazil. It is based on the hypothesis that legislative declarations of assets as cultural heritage have been increasing in recent years, often motivated by political interests and disconnected from the principles that guide patrimonialization policies. In this context, the research highlights cultural heritage as a field of dispute, where the federal Legislative Branch seeks to assert itself as a defining agent of national cultural references, appropriating a function traditionally attributed to the Institute of National Historical and Artistic Heritage (Iphan). Keywords: intangible cultural heritage; rondon project; patrimonialization bill; legislative branch.